“Adorai o Senhor na beleza de seu santuário” (Sl 29,2)
Iniciamos o mês de junho de 2023. Mês em que celebramos a Solenidade da SS. Trindade. A Trindade Santa, em seu valsar amoroso se revela na comunidade humana e em toda a sua criação. O olhar divino contempla o universo, e do caos faz o cosmos, a beleza. Como afirmou Ambrósio de Milão:
“Assisti-me, pois, como árbitros da coroa, e entrai comigo neste grande e admirável teatro de toda a criação visível. Então, quando o Espírito se moveu sobre as águas, não havia graça na criação, mas, após a criação deste mundo, também recebeu a operação do Espírito, ganhou toda beleza dessa graça com a qual o mundo é iluminado. Finalmente o profeta declarou que a graça do universo não pode subsistir sem o Espírito Santo quando disse: “Tu tornarás seu fôlego, e eles fraquejarão e retornarão ao pó. Envia teu o Espírito e eles serão criados e tu renovarás a face da terra”.
No Séc IV, São Basílio dizia: “Por natureza, todos os homens desejam o belo”; têm sede do belo. Gregório Nazianzeno afirmava: “Deus fez o homem poeta do seu resplendor”. Uma das mais profundas intuições estéticas já verbalizada sobre o destino do ser humano, encontra-se no livro o Idiota de Dostoievsky: “a beleza salvará o mundo”. Uma pessoa que sabe estabelecer relações criativas com os outros, com a arte e com a natureza é capaz de salvar-se, neste sentido, não estritamente religioso, mas quando de fato salvar-se é escapar do inferno da mediocridade e desfrutar da saúde (psíquica, moral, metafísica, ética) de ser. Essa beleza é capaz de integrar o ser humano na sua totalidade. É esplendor da verdade que é o dinamismo trinitário de Deus, é Ele próprio em seu mistério de amor relacional.
No “Crucificado-Ressuscitado Deus exaltou a beleza do seu amor em Jesus. O amor é belo, capaz de tudo crer, desculpar, perdoar e jamais acabar, conforme afirma Paulo na primeira carta aos Coríntios. O véu quenótico que cobre o esplendor de Deus, manifesta na cruz a grandeza do amor que assume a enfermidade humana para resgatá-la. A deformação de Jesus enquanto corpo, enquanto vida, enquanto projetos, na verdade é o triunfo da beleza do amor que passa por torturas para chegar à libertação e no auge da alegria”.
A cruz é a verdadeira força magnética em torno da qual tudo se correlaciona. Para o evangelista Marcos, na cruz do Filho se revela a identidade de Deus e o sentido da fé dos discípulos em todo tempo, mostrando que o encontro com Cristo na estrada da Galiléia, isto é, sobre as estradas da sequela (Mc 1, 14-15.16-20), será sempre o encontro com o crucificado. Como afirmou Evdokimov: ” Cristo é o lugar supremo do advento, onde, de uma vez por todas, a Beleza veio para resplandecer em todo o seu fulgor salvífico” . O movimento trinitário é como uma dança em sua leveza e elevação, pode-se afirmar:
“Ó dançador em rodas místicas! Ó festa de casamento dos espíritos! Ó páscoa divina, festa nova de todas as coisas! Ó cósmica reunião festiva, ó alegria do universo, ó desejo e encanto, através dos quais a morte sinistra foi destruída. E o povo que estava embaixo ressurge dos mortos e proclama a plenitude ali em cima: O coro da terra retorna”. (Hipólito de Roma)
Desde o início, o cristianismo demonstra em seu núcleo um dinamismo valsante. Há um movimento descendente que pela encarnação, desce até nós se faz um de nós, valseia conosco: e um ascendente, nós que somos elevados para Ele em Jesus Cristo pela Ressurreição e Ascensão. Mas, também há o movimento dos cristãos seguidores e seguidoras de Jesus. O discipulado vive no aqui e agora do reino de Deus, em sintonia com toda criação do mundo, a missão como dança que será transformada na própria imagem da redenção e da glória futura . O cristianismo é, por excelência, dinamismo, um sobe-e-desce para Deus, e para a terra. A encarnação é o abraço valsante entre a Trindade e o mundo. Paulo, falando do compromisso radical da comunidade dos Coríntios diz que: ” fomos dados em espetáculo ao mundo…somos loucos por causa de Cristo”(1 Cor 4, 9). A cruz torna possível o movimento do Espírito do Pai para nós.
A cruz ergue-se ao coração trinitário de Deus. No período primitivo martirial, onde a comunidade perseguida é atenta à voz do Espírito e o denomina de Consultor, o Espírito aparece como o instrutor, aquele que fala e ensina, o Espírito é Aquele que torna possível a compreensão verdadeira da ação missionária da Igreja. Faz com que a pessoa humana acolha a fidelidade de Deus, lhe dê liberdade para que Ele passeie no interior do seu coração. Ao mesmo tempo, o Espírito é aquele que fala e quem realiza a vontade de Deus, nessa dinâmica a pessoa aparece como instrumento de sua ação.
O comportamento discipular é expresso através da verdadeira configuração com o Senhor, numa entrega sempre crescente e consciente, em constante superação do egocentrismo e do eu solitário, como afirmava Bárbara Maix: “Eu já me coloquei inteiramente em suas santas mãos”. Inácio de Antioquia, no II século do Cristianismo dizia: “sois as pedras do templo do Pai, preparadas para a construção de Deus Pai, alçadas para as alturas pela alavanca de Jesus Cristo, alavanca que é a cruz, servindo-vos do Espírito Santo como de uma corda”. É uma realidade mistagógica, a mística trinitária exige uma abertura permanente do (a) místico (a) em relação ao amor do Pai, revelado no Filho e a graça do Espírito Santo. O Filho de Deus encarnado na história e o Espírito Santo, enviados do Pai, revelam a Santíssima Trindade de forma bela, não compreendida num emaranhado abstrato, mas a partir de uma experiência da Comunidade eclesial. O mistério trinitário é a base da consideração mistérica da Igreja
A Trindade Santa para as Irmãs do Imaculado Coração de Maria, é Origem-Arquétipo da Congregação: assim nos afirma Bárbara Maix (Fundadora): “A SS Trindade iniciou a Obra da Fundação e há de completá-la”.
A consciência de que a SS. Trindade iniciou a Obra e que ela mesma haverá de completá-la; traz à tona a verdade central do cristianismo. No entanto, um dos elementos que nos favorecem na compreensão do pensamento trinitário de Bárbara é sua visão comunitária da Vida Consagrada espelhada nas Primeiras comunidades cristãs, donde se deduz que, no centro da prática humana estão as relações, cujo fundamento se encontra na Vida ad intra da Trindade Santa, e sua relação ad extra. A Trindade, como comunidade, é a resposta e a solução à sociedade humana; seu impulso de abertura vinculante e de interligação, unidade e comunhão é fundamento para uma Igreja sinodal que processualmente constrói a sinodalidade e a solidariedade universal.
Bárbara, ao compreender e, insistir que a Congregação tem sua origem na Trindade, escolhendo a Comunidade primitiva como modelo de vida comunitária, implicitamente enquanto teoria, está atribuindo à Congregação uma dinâmica pericorética inter-relacional, onde os membros devem renascer das cinzas nas quais “…o Espírito Santo edifique um novo templo, mais belo e mais rico que o de Salomão, para honra de Deus e de Maria”.
Seu Projeto de Vida Consagrada vinha revestido de uma teologia de comunhão, que devia ser expresso na forma de assumir o poder, os bens compartilhados, socializados, para uma verdadeira sustentabilidade congregacional: “que todas assumam o espírito do primeiro século ou aniquile tudo; assumam com todo fervor ou ponha para fora quem a isso não se dispuser!”. Bárbara tem a unidade como uma grande orquestra de valsa, onde a harmonia, o espírito de união é a batuta que rege a alegria elevada ao céu no coração da terra.
A partir da compreensão de que a Trindade é Origem da Congregação, a comunhão trinitária é, sem dúvida, sua fonte e modelo onde o Espírito Santo, o amor que congrega a Trindade, é quem reúne e une as Irmãs numa autêntica comunidade de vida consagrada, e é quem realiza a maravilhosa comunhão fraterna, unindo todas intimamente em Cristo, na vivência do discipulado. Para Bárbara, a vivência comunitária assume as ondulações da diversidade dos carismas, onde cada Irmã compõe a valsa da vida numa melodia coletiva. Cantava a beleza de Deus no mais profundo de sua alma.
Assim como na vida intratrinitária de Deus há o reconhecimento das pessoas entre si, em sua autodistinção e autodoação, onde o Pai se comunica em sua paternidade, o Filho em sua filiação e o Espírito em sua expiração na unidade do Uno e na Trindade das pessoas, assim essa realidade divina deve perpassar a Congregação. Seguindo esse modelo na vida comunitária, cada Irmã assume sua distinção mediante o carisma concedido a cada uma para o bem comum, assumindo o Carisma Congregacional. Tudo se pauta em ordenar a comunhão humana com a SS. Trindade que expressa através das relações, a koinonia, a paixão por sua criação em sua multiplicidade e em sua diversidade.
Junho, ainda nos traz o dia do Imaculado Coração de Maria, Festa maior da Congregação. Maria testemunhou fidelidade ao Projeto da Trindade, acolhendo em seu ventre a encarnação da segunda Pessoa, deixando-se cobrir pela “sombra do Altíssimo”, (Lc 1,35) o Espírito Santo. Na sinodalidade com Isabel, Maria cantou as maravilhas de Deus fiel à sua Aliança de geração em Geração. Celebrar essa Festa, é elevar-se, estar acima; é antecipar o fim; é viver na plenitude do prometido; é recuperar-se, ser íntegro para suportar o caminho no deserto, “é viver da esperança que não engana”.
Diante do contexto atual, calamitoso da situação socio-econômico-político e religiosa, onde os povos originários sofrem o descaso, roubados em sua dignidade, onde mulheres e crianças são mortas, vítimas da violência, do feminicídio, fruto de uma mentalidade escravocrática e patriarcal. Carece assumir o percurso do Caminho, e abraçar as vulnerabilidade, iluminadas/os pelo clarão da Divina Trindade.
Irmã Maria Freire da Silva.
Diretora Geral Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria.
Bacharel e mestra pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, de São Paulo e doutora em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, Itália.