O mês de setembro se aproxima, trazendo para nós várias possibilidades que fecundam a nossa fé. A dedicação à Palavra de Deus nos impele, como Igreja no Brasil, a olharmos o universo que nos envolve e conduz ao tempo anterior onde, ao celebrarmos o dia oito de setembro, a Natividade de Maria mãe de Jesus, o Verbo encarnado, nos vemos diante de uma mulher discípula da Palavra divina, vulnerável aos apelos de Deus no itinerário sinodal, a caminho, na Busca permanente da Vontade de Deus.
Setembro nos remonta ao período patrístico, e traz a celebração de um dos grandes padres da Igreja: S. João Crisóstomo (boca de ouro) (407), homem dotado de uma ousadia profética no compromisso com os pobres e a Igreja. Trazia no cérebro a faísca da Palavra de Deus. Tinha no coração a iluminação e a experiência da Eucaristia como compromisso com os pobres. Homem da Sagrada Liturgia, de sermões ardentes, estudou profundamente a Sagrada Escritura. Amante da verdade, não se calou nem mesmo diante de imperadores e os grandes de seu tempo, dando assim elementos para a Doutrina Social da Igreja. Com o zelo e a coragem que o caracterizavam, Crisóstomo levantou do púlpito a voz contra abusos do poder imperial, terminou sofrendo exílios, e, no dia 14 de setembro de 407, a “Boca de Ouro” ficou em silêncio aos ouvidos humanos e abriu-se para cantar as glórias e louvores ao seu Criador e Redentor no Céu. (A. M. TOMÉ,2013) Crisóstomo foi admirado pelo povo, totalmente configurado com Jesus Cristo e com os pobres. Usou o púlpito não para se vangloriar, se apresentar com vestes refinadas, mas para conduzir a comunidade para Deus na unidade e comunhão eclesial.
Juntamente a Crisóstomo, celebramos o dia de S. Jerônimo (420), tradutor da Bíblia a pedido do Papa Damaso. Por “herança espiritual bíblica, Jerônimo deixou para a Igreja, sua jornada existencial, sofrida e comprovada pelo amor ao estudo bíblico, a raiz de uma santidade cristã” sólida. Ao traduzir e revisar a Bíblia para o latim, Jerônimo teve como ponto de partida a orientação e o legado de Orígenes: “sobre as Escrituras, que a considerava um símbolo ou mistério do universo criativo e da economia salvífica, constituindo assim um mistério a ser decifrado e comunicado”. Origenes escreveu: “Sentimos que tudo está cheio de mistério”.
Jerônimo criou uma circularidade hermenêutica entre o comentarista, o leitor e as Escrituras Sagradas, onde o estudo, o ensino, a escuta, a oração, o ascetismo, viviam, de acordo com a luz penetrada na alma, o sentido ético e espiritual do texto, tornam-se um. Portanto, “o amor pela Bíblia foi o fio condutor de toda a sua existência” e graças à sua tradução da Escritura Sagrada para o Latim, ele foi o primeiro a favorecer sua transferência, como a Palavra de Deus encarnou no tempo e no espaço de Jesus, ao tempo e espaço em que estamos imersos”. (Card. Gianfranco Ravasi)
Jerônimo traduziu relutantemente o livro de Judite em uma única noite, Tobias em um único dia, usando um texto aramaico que não chegou até nós. Ele rejeitou os outros livros deuterocanônicos (Siraque, Sabedoria, Baruc, Macabeus) porque não foram escritos em hebraico e, portanto, não aceitos pelo Cânon Judaico. Em apenas três dias ele enfrentou o Cântico dos Cânticos, Eclesiastes e Provérbios. No ano de 406, Jerônimo chegou ao fim de seu empreendimento e a partir do momento, teria se dedicado até a morte, sobretudo à atividade de exegeta, de teólogo e polemista incansável.
As críticas, muitas vezes compreensíveis, considerando os tempos de trabalho e nossa sensibilidade filológica diferente, a Vulgata não só constituiu um monumento literário do latim tardio, mas moldou a linguagem teológica do Ocidente cristão. Na verdade, o sucesso chegou à obra apenas alguns séculos depois, quando teve a aprovação prática dele mesmo(RAVASI). Seu título se deve à redação latina “vulgata editio” ou “edição para o povo”, comentando tanto o enorme sucesso que obteve, fácil de ler ao alcance do povo, quanto o estilo não excessivamente refinado(L. LAVIOLA, 2018).
Isso nos leva ao encontro com a Palavra que se fez carne e habitou entre nós: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade” (cf. Jo 1, 14). O mês de setembro nos desafia diante das interpelações da Palavra divina do amor com que Deus nos amou. Palavra que é carne, que é uma Pessoa, Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus. Essa realidade nos faz adentrar no mistério divino, onde somente o Espírito Santo penetra e o Filho conhece, nos tornando imersos no dinamismo amoroso do nosso Deus.
Podemos dizer com o poeta Luís Vaz de Camões (1524-1580), “o Amor é fogo que arde sem se vê”. A Palavra de Deus na boca e na pena dos dois padres acima citados, é Amor divino que arde em nossos corações, que movimenta nosso cérebro para a verdade e a justiça, que gera solidariedade e posturas éticas em nossas escolhas. A Palavra nos orienta no caminho sinodal, nos impelindo a construirmos sinodalidade, abraçando nossas vulnerabilidade, nos potencializando, tornando-nos discípulas e discípulos de um Tempo Novo. Deixemo-nos guiar pela Palavra.
Irmã Maria Freire da Silva.
Diretora Geral Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria.
Bacharel e mestra pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, de São Paulo e doutora em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, Itália.